domingo, 23 de junho de 2013

A regra é clara, Arnaldo!



Alguém me perguntou um dia desses porque os protestos não começaram logo que o Governo Federal topou se vender pra Fifa, já somam alguns anos. Falei que os protestos se iniciaram em Sampa pelo aumento das tarifas dos transportes públicos, num movimento de esquerda que acabou se organizando por todo o Brasil, o MPL (Movimento Passe Livre). O momento só foi propício para que o caldeirão revoltoso esquentasse: aumento das passagens pelo país; discurso dos governos e prefeituras de que esse aumento tem que se dar, pois as concessionárias não têm como arcar com as despesas; milhões de pessoas migrando pelo país para assistir aos jogos em estádios tinindo de novos, se hospedando em hotéis construídos à sombra dos PDDU’s (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) das cidades, movimentando a economia, especialmente privada, de uma maneira enlouquecida.

Óbvio que a temática dos transportes públicos acabou tomando proporções para uma discussão além: a de um projeto real, discutido, participativo e popular de cidade – mobilidade, que é o mote maior, acesso à educação e saúde públicas de qualidade. Me atenho a essas discussões, pois o que se viu após algum tempo, pelas ruas de todo o Brasil foi uma série de bandeiras levantadas de uma maneira quase esquizofrênica (sem ofensa aos esquizofrênicos). Pautas que não tinham absolutamente nada que ver com as propostas iniciais. E, o pior, pautas direitistas, que não sei dizer se são somente direitistas ou houve um quê de alienação mesmo. Afinal de contas, pela 1ª vez em muito tempo é a classe média saindo às ruas. É a classe média aplaudindo de suas janelas, de seus carros em congestionamentos, enchendo a timeline do Facebook de notícias, charges e gritando em plenos pulmões que não dá mais.

O que não dá mais? As palavras de ordem mais citadas eram “O Gigante Acordou”, “Acorda Brasil”, dentre outras variantes como: estou na rua lutando, enquanto você está no Facebook, vendo novela etc, etc. Desculpa, mas, o que querem me dizer com isso?

Queridxs, eu sei que a maioria de nós (e me incluo nesse bolo, afinal, sou classe média) não pega ônibus, ou ao menos não sofre com os problemas de acesso à saúde e educação públicas. Depois que as manifestações se encerram, por mais que o sangue esteja quente de raiva legítima, cada um(a) vai pra sua casa, come, e vai discutir política no facebook. Queridxs, a gente, classe média, que acordou agora. O porteiro do teu prédio, as domésticas dos apartamentos onde você vive, os movimentos sem terra, sem teto, negro, feminista, LGBT etc., estão acordados há muito tempo.

Doeu muitíssimo tomar tiro de bala de borracha e ter que correr como o Usain Bolt aspirando gás lacrimogênio. É muito triste ver esse tipo de repressão fascista correndo pelo Brasil e a Globo, dentre outras, que representam a forte mídia de direita, noticiando que as manifestações são lindas e pacíficas, e apenas um pequeno grupo de arruaceiros tentou arrumar confusão com a polícia, que estava somente observando. Observando o que? Nossa passeata?, para garantir sua organização para que nós lindxs, ficássemos bem até o final?

No entanto, o que dói mais é saber que, apesar de toda a revolta que a gente sente por ter sofrido isso todos esses dias, uma reação que vai de encontro às leis da física, isso acontece todos os dias. Não conosco. Não quando estamos nas aulas, nos engarrafamentos, em casa vendo tv, no facebook, ou lendo, quando estamos até em rodinhas de discussão sobre questões políticas micro e macro, ou quando estamos até adentrando os pântanos da militância. Não acontece.

Mas acontece todo dia. Nas periferias, nas favelas. Com o jovem de pele preta que só por estar caminhando nas ruas, respirando, é um desrespeito. O que ele está fazendo ali? Suspeito, então a polícia tem que abordá-lo da maneira mais violenta possível, para relembrá-lo todos os dias que ele, e todos e todas iguais a ele estão sendo desrespeitosos por existirem simplesmente.

Acontece quando o MST, o maior movimento de luta por terra e reforma agrária da América Latina, ocupa um pedaço de terra de algum latifundiário poderoso e é oprimido pela polícia privada deste senhor, pela polícia pública e pela polícia mais atenta e opressora de todas: a mídia de direita. Todxs ali, com sua luta mais que legítima, firmada há anos, e ainda continuam sendo firmemente reprimidxs, repreendidxs e representadxs como um bando de arruaceirxs (essa expressão parece comum?).

Exemplos existem aos montes. Tanto dos que se organizam, tanto dos que não. O fato é que há uma imensa parcela de brasileirxs que está acordada há tempos; que nunca dormiu, de fato. E se resolvemos nos juntar e tomar esta luta também como nossa, temos que lembrar desses detalhes. Que, em verdade, não são detalhes.

Temos que lembrar que embora desencorajemos a polícia na maneira com que vem tratando o estudantado brasileiro esses dias, encorajamos a manter nossas ruas “limpas”, seguras e encher nossos cárceres com esses desviantes da sociedade que não têm contexto de vida, muito menos solução. Então, palmas para os policiais, e que aumentem seus salários, pois seu trabalho em manter esses marginais longe de nós, atrapalhando nossa vida e segurança, é muito perigoso.

E, sinceramente, esquecendo a polícia como um conjunto de indivíduos, e que ali há alguns que querem mesmo “descer o pau”, não repreendo a ação deles. Afinal, são trabalhadores explorados como vários outros que não puderam se organizar para estar ali lutando por seus direitos também. Além disso, sofrem uma lavagem cerebral intensa, para não se reconhecerem como iguais àqueles com os quais entram em confronto diariamente. Uma suposta hierarquia de poderes se instala, pois eles são os homens fardados e armados. Mas, quem está por trás de tudo isso, ditando quais estratégias, e, em especial, quais ordens eles devem seguir? Será que todos eles dormem em paz, em casa, após ações como estas? Será que eles têm consciência do seu papel social? Será que têm alguma vaga noção de que também são explorados e diariamente sofrem violências?

No fim das contas, após analisar tudo isso, a maior raiva que sinto é da gente. Da camada a que pertenço. Alguns de nós acordaram há algum tempo. Outros acordaram agora. Não sei quantos ainda permanecem alheios às questões mais profundas e escondidas do que vem acontecendo. Em quase 1 ano, dobrou a quantidade de usuários do sistema de transporte público em São Paulo, embora não tenha havido aumento de frota. E Geraldo Alckmin me vem com aquela cara sem expressão, em rede nacional, dizer que o aumento das taxas foi revogado, mas que os investimentos públicos terão que diminuir para compensar isto, pois as concessionárias não terão como lidar com esse não-aumento.  A Fonte Nova foi totalmente reconstruída em 2 anos, numa parceria público-privada bastante duvidosa (como várias outras acontecendo no país), enquanto o metrô de Salvador leva 20 anos em construção, tendo suas obras constantemente supervalorizadas, para que esse dinheiro entre no bolso de alguém. O STF vai gastar R$90 milhões para reformar o apartamento do seu futuro e aclamado pela direita presidente Joaquim Barbosa (dinheiro público, dinheiro nosso). Dentre tantas outras aberrações que acontecem há décadas nessa democracia enfraquecida que é o Brasil.

Nem por isso concordo que corrupção se torne crime hediondo. Primeiramente, porque não concordo com o sistema penal como um todo, e seu funcionamento. Segundo, porque aprendi que, com esses verdadeiros criminosos, é mexendo no bolso que dói mais.

Por fim, torço para que após essas manifestações, olhos sejam abertos: o problema não é o PT. O problema não é Marco Feliciano. O problema não é os Estados Unidos e o imperialismo. O problema é maior, sistêmico. E, se não houver uma revolução, que a gente comece a se organizar pra corroer por dentro.

Para que, da próxima vez, a regra não seja tão clara, Arnaldo: só quem se aproxima dos estádios é quem tem como bancar as exigências da FIFA que vêm todas juntas num só ingresso. Para que não nos curvemos, mais uma vez, ao de fora. Ao branco, rico, homem europeu. Para que o futebol deixe de ser pão e circo. E eu possa torcer pelo Brasil com o mesmo amor que torço pela Seleção Brasileira (admito).