Alguém me perguntou um dia desses porque os protestos não
começaram logo que o Governo Federal topou se vender pra Fifa, já somam alguns
anos. Falei que os protestos se iniciaram em Sampa pelo aumento das tarifas dos
transportes públicos, num movimento de esquerda que acabou se organizando por
todo o Brasil, o MPL (Movimento Passe Livre). O momento só foi propício para
que o caldeirão revoltoso esquentasse: aumento das passagens pelo país;
discurso dos governos e prefeituras de que esse aumento tem que se dar, pois as
concessionárias não têm como arcar com as despesas; milhões de pessoas migrando
pelo país para assistir aos jogos em estádios tinindo de novos, se hospedando
em hotéis construídos à sombra dos PDDU’s (Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano) das cidades, movimentando a economia, especialmente privada, de uma
maneira enlouquecida.
Óbvio que a temática dos transportes públicos acabou tomando
proporções para uma discussão além: a de um projeto real, discutido,
participativo e popular de cidade – mobilidade, que é o mote maior, acesso à
educação e saúde públicas de qualidade. Me atenho a essas discussões, pois o
que se viu após algum tempo, pelas ruas de todo o Brasil foi uma série de
bandeiras levantadas de uma maneira quase esquizofrênica (sem ofensa aos
esquizofrênicos). Pautas que não tinham absolutamente nada que ver com as
propostas iniciais. E, o pior, pautas direitistas, que não sei dizer se são
somente direitistas ou houve um quê de alienação mesmo. Afinal de contas, pela
1ª vez em muito tempo é a classe média saindo às ruas. É a classe média
aplaudindo de suas janelas, de seus carros em congestionamentos, enchendo a
timeline do Facebook de notícias, charges e gritando em plenos pulmões que não
dá mais.
O que não dá mais? As palavras de ordem mais citadas eram “O
Gigante Acordou”, “Acorda Brasil”, dentre outras variantes como: estou na rua
lutando, enquanto você está no Facebook, vendo novela etc, etc. Desculpa, mas,
o que querem me dizer com isso?
Queridxs, eu sei que a maioria de nós (e me incluo nesse
bolo, afinal, sou classe média) não pega ônibus, ou ao menos não sofre com os
problemas de acesso à saúde e educação públicas. Depois que as manifestações se
encerram, por mais que o sangue esteja quente de raiva legítima, cada um(a) vai
pra sua casa, come, e vai discutir política no facebook. Queridxs, a gente,
classe média, que acordou agora. O porteiro do teu prédio, as domésticas dos
apartamentos onde você vive, os movimentos sem terra, sem teto, negro,
feminista, LGBT etc., estão acordados há muito tempo.
Doeu muitíssimo tomar tiro de bala de borracha e ter que
correr como o Usain Bolt aspirando gás lacrimogênio. É muito triste ver esse
tipo de repressão fascista correndo pelo Brasil e a Globo, dentre outras, que representam
a forte mídia de direita, noticiando que as manifestações são lindas e
pacíficas, e apenas um pequeno grupo de arruaceiros tentou arrumar confusão com
a polícia, que estava somente observando. Observando o que? Nossa passeata?,
para garantir sua organização para que nós lindxs, ficássemos bem até o final?
No entanto, o que dói mais é saber que, apesar de toda a
revolta que a gente sente por ter sofrido isso todos esses dias, uma reação que
vai de encontro às leis da física, isso acontece todos os dias. Não conosco.
Não quando estamos nas aulas, nos engarrafamentos, em casa vendo tv, no
facebook, ou lendo, quando estamos até em rodinhas de discussão sobre questões
políticas micro e macro, ou quando estamos até adentrando os pântanos da
militância. Não acontece.
Mas acontece todo dia. Nas periferias, nas favelas. Com o
jovem de pele preta que só por estar caminhando nas ruas, respirando, é um
desrespeito. O que ele está fazendo ali? Suspeito, então a polícia tem que
abordá-lo da maneira mais violenta possível, para relembrá-lo todos os dias que
ele, e todos e todas iguais a ele estão sendo desrespeitosos por existirem
simplesmente.
Acontece quando o MST, o maior movimento de luta por terra e
reforma agrária da América Latina, ocupa um pedaço de terra de algum
latifundiário poderoso e é oprimido pela polícia privada deste senhor, pela
polícia pública e pela polícia mais atenta e opressora de todas: a mídia de
direita. Todxs ali, com sua luta mais que legítima, firmada há anos, e ainda
continuam sendo firmemente reprimidxs, repreendidxs e representadxs como um
bando de arruaceirxs (essa expressão parece comum?).
Exemplos existem aos montes. Tanto dos que se organizam,
tanto dos que não. O fato é que há uma imensa parcela de brasileirxs que está
acordada há tempos; que nunca dormiu, de fato. E se resolvemos nos juntar e
tomar esta luta também como nossa, temos que lembrar desses detalhes. Que, em
verdade, não são detalhes.
Temos que lembrar que embora desencorajemos a polícia na
maneira com que vem tratando o estudantado brasileiro esses dias, encorajamos a
manter nossas ruas “limpas”, seguras e encher nossos cárceres com esses
desviantes da sociedade que não têm contexto de vida, muito menos solução.
Então, palmas para os policiais, e que aumentem seus salários, pois seu
trabalho em manter esses marginais longe de nós, atrapalhando nossa vida e
segurança, é muito perigoso.
E, sinceramente, esquecendo a polícia como um conjunto de
indivíduos, e que ali há alguns que querem mesmo “descer o pau”, não repreendo
a ação deles. Afinal, são trabalhadores explorados como vários outros que não
puderam se organizar para estar ali lutando por seus direitos também. Além
disso, sofrem uma lavagem cerebral intensa, para não se reconhecerem como
iguais àqueles com os quais entram em confronto diariamente. Uma suposta
hierarquia de poderes se instala, pois eles são os homens fardados e armados.
Mas, quem está por trás de tudo isso, ditando quais estratégias, e, em
especial, quais ordens eles devem seguir? Será que todos eles dormem em paz, em
casa, após ações como estas? Será que eles têm consciência do seu papel social?
Será que têm alguma vaga noção de que também são explorados e diariamente
sofrem violências?
No fim das contas, após analisar tudo isso, a maior raiva
que sinto é da gente. Da camada a que pertenço. Alguns de nós acordaram há
algum tempo. Outros acordaram agora. Não sei quantos ainda permanecem alheios
às questões mais profundas e escondidas do que vem acontecendo. Em quase 1 ano,
dobrou a quantidade de usuários do sistema de transporte público em São Paulo,
embora não tenha havido aumento de frota. E Geraldo Alckmin me vem com aquela
cara sem expressão, em rede nacional, dizer que o aumento das taxas foi
revogado, mas que os investimentos públicos terão que diminuir para compensar
isto, pois as concessionárias não terão como lidar com esse não-aumento. A Fonte Nova foi totalmente reconstruída em 2
anos, numa parceria público-privada bastante duvidosa (como várias outras
acontecendo no país), enquanto o metrô de Salvador leva 20 anos em construção,
tendo suas obras constantemente supervalorizadas, para que esse dinheiro entre
no bolso de alguém. O STF vai gastar R$90 milhões para reformar o apartamento
do seu futuro e aclamado pela direita presidente Joaquim Barbosa (dinheiro
público, dinheiro nosso). Dentre tantas outras aberrações que acontecem há
décadas nessa democracia enfraquecida que é o Brasil.
Nem por isso concordo que corrupção se torne crime hediondo.
Primeiramente, porque não concordo com o sistema penal como um todo, e seu
funcionamento. Segundo, porque aprendi que, com esses verdadeiros criminosos, é
mexendo no bolso que dói mais.
Por fim, torço para que após essas manifestações, olhos
sejam abertos: o problema não é o PT. O problema não é Marco Feliciano. O
problema não é os Estados Unidos e o imperialismo. O problema é maior,
sistêmico. E, se não houver uma revolução, que a gente comece a se organizar
pra corroer por dentro.
Para que, da próxima vez, a regra não seja tão clara,
Arnaldo: só quem se aproxima dos estádios é quem tem como bancar as exigências
da FIFA que vêm todas juntas num só ingresso. Para que não nos curvemos, mais
uma vez, ao de fora. Ao branco, rico, homem europeu. Para que o futebol deixe
de ser pão e circo. E eu possa torcer pelo Brasil com o mesmo amor que torço
pela Seleção Brasileira (admito).